É uma das figuras maiores da história do atletismo português e o nome incontornável do Corta-Mato nacional. Paulo Guerra, o mítico “queniano branco”, continua a ser sinónimo de garra, resistência e talento. Nascido em Barrancos, moldado pelos terrenos acidentados do Alentejo, construiu uma carreira ímpar que o levou a subir 17 vezes ao pódio em Europeus e Mundiais, tornando-se uma referência de uma geração que marcou o atletismo português.
Quase duas décadas após o fim da carreira, o antigo campeão mantém a paixão pela modalidade e acredita que a “raça portuguesa” ainda pode devolver o País aos tempos de glória. O agora embaixador do Campeonato da Europa de Corta-Mato Lagoa 2025, que se realiza dia 14 de dezembro, e ainda vice-presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, recorda os dias de sacrifício, a força de vencer e deixa uma mensagem de fé numa nova vaga de atletas nacionais.
O Paulo Guerra é uma das maiores referências nacionais no que diz respeito ao corta-mato. Quando olha para o passado, como é que analisa aquilo que o tornava diferente para conseguir ganhar a alcunha de ‘queniano branco’?
Essencialmente eu adorava correr o Corta-Mato. Foi uma paixão e foi aí que descobri que me sentia, como costuma dizer-se, como um peixe na água. Isto devido às características da zona onde nasci, onde vivi e onde treinei, em Barrancos, uma zona com um terreno bastante acidentado, o que implicava uma atividade física muito, muito forte. E foi assim desde miúdo, a correr naqueles percursos acidentados de Barrancos, que me deram resistência e força. E depois, graças a isso, quando entrei nas primeiras provas eu ganhava com bastante facilidade, praticamente sem treinar atletismo.

Foi essa resistência conquistada em Barrancos que lhe deu forças para ir ao limite, mesmo quando por vezes parecia que já tinha esgotado todas as energias?
No livro do nosso grande campeão Carlos Lopes, ele falava da “força de vencer”. E creio que é mesmo isso, é a força de querer vencer e, acima de tudo, acreditar que não somos inferiores a ninguém, que estando em forma não temos medo de ninguém e entramos para ganhar. Esse espírito de vencedor, de ganhador… quando estava em forma e se o terreno tivesse as características de que eu gostava, eu não tinha receio de ninguém no mundo. Há outra coisa que é muito importante: eu planeava a prova de Corta-Mato ao detalhe em conjunto com os meus treinadores, mas muitas vezes eu treinava sozinho e durante os três meses que antecediam um determinado objetivo, eu só via e só treinava para o Corta-Mato.
Sente, todos estes anos depois, que valeu a pena?
Sim, sim. Sem sombra de dúvida. Quando olho para trás… e agora sim, passados todos estes anos, quase 20 anos depois de abandonar a alta competição, olhando para trás é agora que – falo por mim – dou mais valor àquilo que consegui. Porque vejo que efetivamente foi difícil. Foi muito difícil, mas consegui, conseguimos marcar uma geração, conseguimos fazer história, conseguimos – como nos dizia o grande treinador, o professor Moniz Pereira, que se nos derem as mesmas condições, não eramos inferiores a ninguém – e assim, como dizia, conseguimos levar longe o nome de Portugal e acabámos por conseguir fazer história no mundo do atletismo, essencialmente assente nesta vertente tão apaixonante como é o Corta-Mato.
Falou do Carlos Lopes… como era treinar e competir com grandes nomes como Domingos Castro, Fernando Mamede, entre muitos outros que fizeram a era dourada do atletismo do meio-fundo? Como era estar inserido no meio destes nomes a representar o País?
Recordo-me que numa madrugada de agosto de 1984, quando estavam a acontecer os Jogos Olímpicos de Los Angeles, o meu pai foi buscar-me ao quarto às 3h30 da manhã –eu dois anos antes já tinha sido campeão de atletismo do distrito de Beja – e nessa madrugada ao ver o Carlos Lopes vencer a medalha de ouro na maratona olímpica, disse ao meu pai que um dos meus sonhos, aquilo que eu gostaria era tentar ser um campeão como o Carlos Lopes foi. Eu era muito pequeno, mas os meus ídolos não eram futebolistas ou grupos de música, os meus ídolos eram o Carlos Lopes e o Fernando Mamede, porque tínhamos um campeão olímpico e um recordista do mundo de pista. Por isso, tentei seguir os passos deles. Felizmente consegui conviver com alguns, aprendendo aquilo que eles faziam em termos de profissionalismo, dedicados à modalidade 24 horas por dia. E só assim, com essa dedicação, é que nós conseguimos todos levar o nome de Portugal e a bandeira de Portugal ao mais alto patamar.
Mas tem consciência que o Paulo Guerra é também uma das grandes referências nacionais nesta área do Corta-Mato?
Sem dúvida. Conseguir subir 17 vezes ao pódio em campeonatos do mundo e da Europa…. Obviamente que quando olho para trás, enfim, sinto um orgulho imenso, sabendo o quão difícil foi. Pertencemos a uma geração de ouro que começou com o Carlos Lopes e o Fernando Mamede, mas depois, na década de 90, tivemos inúmeros títulos em todas as vertentes do meio-fundo e fundo e pertencer a essa geração é um privilégio e é sentir que valeu a pena, como disse. E se me perguntassem se voltaria a fazer o mesmo, eu sem dúvida que tentaria fazer o mesmo, tentava era melhorar ainda alguns aspetos que não consegui em determinados momentos.

Falou do Moniz Pereira, mas teve outros grandes treinadores também. O que é que guarda do que eles lhe diziam?
De todos eles só guardo as boas memórias. Não me lembro das memórias menos boas. Todos eles foram peças fundamentais para poder chegar ao êxito. Um atleta nunca consegue ganhar nada sozinho, para mais sendo o atletismo uma modalidade tão exigente. Se não for o treinador, se não for a família, se não for o clube, os colegas de treino, todos estarmos dentro desse barco e se todos remarem em sintonia é possível alcançar os objetivos.
O Corta-Mato e na realidade o fundo e meio-fundo, vivem atualmente momentos menos mediáticos. O que é que sente que falta para se voltar a formar campeões com a mesma raça do Paulo Guerra?
Acredito que seja uma questão de espírito, de garra, de sacrifício, de praticamente ‘morrer’ todos os dias no treino. Agora parece que já há alguns atletas a adotarem de novo essa estratégia de fazerem grupos de treino com o mesmo objetivo, treinar todos os dias de manhã e tarde juntos com a mesma orientação, o mesmo treinador e todos com o mesmo objetivo. Aí acredito poderemos novamente ter algum sucesso, mais do que temos tido nas últimas décadas. Porque eu não acredito que o talento do meio-fundo e fundo, que eu acho tão característico do povo português, tenha desaparecido. É óbvio que agora é mais difícil porque há muitos países a trabalhar bem, a naturalizar atletas oriundos essencialmente de países de África e acaba por ser um pouco mais difícil. Mas treinando forte, planeando bem, em equipa, acredito que esta geração que agora está a surgir – temos atletas sub-23 com muito talento – se eles tiverem garra, se planificarem bem a época de Corta-Mato, penso que vamos ter de novo algum êxito como não temos tido nos últimos 10 ou 15 anos.
É essa a mensagem que costuma deixar aos mais jovens?
A mensagem que costumo deixar-lhes é que não deixem de acreditar. E, acima de tudo, treinem muito forte, porque não há nenhum campeão que não treine extremamente forte. Tracem um objetivo bem planeado e treinem em conjunto. Eu acredito que com a garra tão característica do povo português – desde os Descobrimentos que fomos sempre um povo com muita garra, nunca fomos um povo acomodado e os genes estão cá.
Obviamente que também temos de dar-lhes as condições, como temos feito, mas se eles meterem na cabeça que conseguem atingir o patamar que pretendem, aí eu acredito que poderemos ter de novo algum êxito no Corta-Mato. Não vou dizer, obviamente, exatamente igual como foi nos tempos do Lopes, do Paulo Guerra ou do Domingos Castro… Mas acredito muito, e na Federação acreditamos muito nesta geração nova que que tem vindo a aparecer nos sub-23. Aquilo que estão a fazer, as marcas que estão a conseguir nas distâncias na pista, assim o comprovam.
O Paulo Guerra é um dos embaixadores de Lagoa 2025, que expectativas existem para esta grande competição que vai realizar-se em Portugal e na qual a FPA está envolvida em termos organizativos?
Portugal é exemplar na arte de bem receber e bem organizar eventos desportivos. E é isso que nós queremos, transmitir aos atletas que nos visitam e a quem vai assistir via televisiva uma bonita imagem do nosso País. Que seja um bonito dia de evento. Em termos de Seleção Nacional não temos qualquer fasquia, acreditamos que poderemos estar perto de conseguir algo, sobretudo a nível coletivo, mas o que queremos é que os atletas portugueses, como são extremamente jovens, mais uma vez, apresentem uma garra extra por correrem em casa. E se calhar com essa garra, podemos surpreender. Portugal volta a organizar pela quarta vez o Campeonato da Europa de Corta-Mato e, como se diz lá fora, o povo português acolhe bem, organiza bem e isso é o fundamental para o sucesso de mais um evento que queremos que orgulhe um País de turismo, e o turismo desportivo também é essencial para a economia portuguesa. Daí que estejamos todos empenhados para concretizar um grande Campeonato da Europa de Corta-Mato em Lagoa.
