Quinze anos depois de conquistar o título europeu de corta-mato em Albufeira, Jéssica Augusto regressa ao epicentro da disciplina como uma das embaixadoras do Europeu de Corta-Mato Lagoa 2025, agendado para 14 de dezembro, levando consigo o simbolismo de uma carreira marcada pela resiliência, pelo talento e por momentos históricos para o atletismo português. A campeã europeia recorda 2010 como um dos anos mais marcantes da sua vida desportiva: além da medalha de ouro no Algarve, chegava de uma época de excelência em pista, com pódios nos 5.000 e 10.000 metros nos Europeus de Barcelona e marcas de referência que a colocavam no auge da forma. A vitória em Albufeira, celebrada perante milhares de portugueses, permanece a memória mais viva: o hino ecoado nas Açoteias e o orgulho de ser a primeira portuguesa campeã europeia de corta-mato.
Numa carreira construída entre títulos, recomeços e superação, Jéssica lembra também os momentos que moldaram a atleta e a mulher: a estreia brilhante na maratona em Londres, em 2011, o impacto emocional da perda do pai, o sexto lugar (à posteriori) na Maratona dos Jogos Olímpicos de 2012 e a reinvenção após a maternidade, culminando no bronze na maratona do Europeu de Zurique. Para os jovens que hoje inspiram o futuro da modalidade, deixa a mensagem de valorização do percurso, da história e do trabalho diário, sublinhando que o desporto foi sempre o seu porto seguro e a força que a fez avançar quando tudo parecia desabar. Em Lagoa, regressa não para competir, mas para inspirar.
Podemos considerar que o ano de 2010 foi um dos melhores da sua carreira, tendo em conta a medalha e ouro conquistada no Corta-Mato no Algarve?

Sim, foi um dos momentos altos da minha carreira, estava no auge quando conquistei o Campeonato da Europa em Albufeira. Algum tempo antes tinha sido segunda classificada nos 10 mil e terceiro lugar nos 5 mil em Barcelona, nos Europeus. Entretanto, também antes disso tinha feito a segunda melhor marca de sempre nos 5000 metros (a melhor pertencia à Fernanda Ribeiro e fiquei a poucos centésimos do recorde nacional dela) e também foi um dos momentos marcantes de 2010. E terminei o ano com a vitória no Europeu de Corta-Mato. Essa prova foi quase como que uma despedida da pista para me preparar para a minha primeira maratona, onde fiz a minha estreia em abril seguinte, em 2011… e logo com a segunda melhor marca nacional de sempre e na altura uma das melhores estreias a nível mundial, na Maratona de Londres. Nessa altura, pensava para mim que nunca mais ia parar… Só que, infelizmente, a vida prega-nos rasteiras e fiquei sem o meu pai… o que mexeu bastante com as minhas emoções, com a cabeça, com tudo.
Que imagem ou momento sente que melhor resume o percurso da Jéssica Augusto enquanto atleta?
Eu tenho muitas imagens, muitos momentos, mas aquele momento que guardo e é especial para mim, é a presença nos Jogos Olímpicos de Londres em que fui sexta classificada (fui sétima ou oitava na prova, mas, entretanto, duas atletas foram desclassificadas por doping)… na Maratona Olímpica 2012. Porque participar nos Jogos Olímpicos é o ponto alto para qualquer atleta.
Que significado tem vestir a camisola a Portugal, representar o nosso País nas grandes competições?
Inicialmente, quando comecei a minha carreira, era um prémio representar Portugal, era o prémio da época. Ou seja, eu trabalhava a época toda para no final receber o prémio de uma convocatória para representar a Seleção. Era o auge, representar a nação. Para mim, era – sempre tinha sido – um sonho representar Portugal. Depois a seguir ao sonho, passou por atingir objetivos mais altos. Pensava, ‘agora que já sei o que é representar Portugal, já sei como é, agora quero obter a melhor marca ou o melhor lugar possível nas provas’. Então foi também trabalhar para conseguir isso. Acho que fiz uma progressão normal de uma atleta do meio-fundo, que nas camadas jovens começa no Corta-Mato, nos 3000 m, com poucas provas ou quase nenhumas de estrada… Então, fui progressivamente, também porque tive bons mentores, bons treinadores que me orientaram, começando pelo Corta-Mato, algumas provas de pista, subindo progressivamente a distância em cada escalão, até chegar ao auge, até chegar à maratona. Atualmente, os atletas fazem a sua estreia muito mais cedo do que naquela altura. Eu fiz a estreia na maratona com 28 anos, se não me engano, agora já há atletas que com 21 anos já estão maratona. Na altura a mentalidade não era essa, as maratonas, digamos, chegavam na etapa final da carreira.
Que memórias é que guarda desse dia 12 de dezembro de 2010, em Albufeira e teve significado especial vencer uma medalha de ouro em casa?
Tinha a meu favor o fator de correr em casa, havia milhares de portugueses no percurso a puxar por mim, por nós, pela Seleção e sabíamos que se saíssemos dali com um bom resultado, coletivamente podíamos chegar ao ouro. Claro que eu tinha o meu objetivo pessoal, que era ser Campeã da Europa, mas naturalmente a equipa também tinha de estar no primeiro lugar. E a maior memória que eu tenho é ouvir o hino e ver uma multidão de gente nas Açoteias a cantar o hino comigo, é uma memória que nunca mais me esqueço. E também, o facto de ter sido a primeira atleta portuguesa a conseguir ser Campeã da Europa de Corta-Mato, isso também me marcou na altura. Nós nesse campeonato tivemos todos muito bons resultados, mas também foi um campeonato que preparámos muito bem. Quando treinava com o João Campos, o nosso plano era ir progressivamente melhorando os lugares até chegar ao título europeu. Título esse que já podia ter acontecido um ano ou dois anos antes. Mas, estava destinado a ser em Portugal e assim foi.

Teve de reinventar-se várias vezes… já falou do falecimento do seu pai, foi mãe também pelo meio. Como é que foi enfrentar esses momentos e que sensações guarda da forma como se reinventou?
Senti essa necessidade, sim, de me reinventar, tive de trabalhar muito a minha mente e também rodear-me de pessoas que me levassem para o caminho que eu queria ir. Posso dizer que tive o apoio de muita gente, mesmo muita gente, após a morte do meu pai, quando eu pensei que nunca mais ia conseguir dar a volta à situação. E por incrível que pareça, o que me voltou a fazer gostar de viver e seguir em frente foi o desporto. Essa parte da minha vida também foi muito desafiante, porque já estava num patamar muito elevado… e a minha sorte foi ter as pessoas certas ao meu lado. Ou seja, tenho mesmo muito orgulho dessa fase, porque quem me acompanhou sabe como é que corri os Jogos Olímpicos, sabe o trabalho que eu tinha feito e aquele que ficou por fazer… mas no final tive a recompensa por ter sido finalista olímpica. Então essa parte da minha carreira é aquela que eu, na verdade, tenho mais orgulho. Depois há a parte do ser mãe. Foi algo planeado, foi algo que sempre quis e aquela era a altura certa, então foquei-me em treinar para o Campeonato da Europa de Zurique, onde fui medalha de bronze na maratona. Sabia que depois disso ia tirar um tempo para mim, ia apostar na maternidade. Corria o risco de conseguir, como corria o risco não conseguir, porque, segundo o meu fisiologista, ainda tinha de ganhar peso para poder conseguir engravidar logo. Só que felizmente não foi preciso… apesar de ter apenas 44 kg na altura. E depois foi todo um processo em que tive novamente de me reinventar, tive de criar outras rotinas, também tive de me rodear com pessoas que me apoiassem e me dessem aquele suporte que era preciso porque a Leonor era pequenina. Eu já tinha mínimos para os Jogos Olímpicos, precisava de os confirmar e também foi desafiante.
Que mensagem é que transmite aos mais jovens atletas que olham para o seu percurso e que sonham seguir os seus passos?
Podia deixar muitas mensagens, mas o que sinto é que os mais jovens atletas já não nos conhecem… e só terminei a carreira há um ano. É um pouquinho isso que me preocupa, nesta geração, é, muitas vezes, a falta de conhecimento daquilo que têm em casa, digamos assim. Eu cheguei a treinar com miúdos, juvenis e juniores, e eu falava de um dos grandes nomes do nosso atletismo, como é o caso do Paulo Guerra. E eles diziam, ‘mas quem é o Paulo Guerra?’ E isso… deixava-me um bocado chocada, porque acho que devia fazer parte da cultura desportiva… Neste momento estou a tirar a licenciatura em desporto, estou a aprender – algo que já sabia – a história de desporto, mas são temas que não me são estranhos. Mau era que com 28 anos de carreira eu não soubesse a história do desporto minimamente. Acho que falta isso aos nossos jovens. Mas para aqueles que me seguem e me conhecem eu vou dar sempre o mesmo conselho, para nunca, nunca desistirem dos seus sonhos. Se querem chegar a um patamar mais acima, o que é normal, atingir um patamar internacional, conquistar medalhas, é importante não perder o foco porque… atualmente há muita tecnologia – que tem coisas boas e coisas más – mas essencial é não perder o foco. Não estou a dizer para deixarem de estudar, porque a maior asneira que podem fazer é deixar de estudar, mas que tentem conciliar ao máximo, que se rodeiem de pessoas boas, pessoas que corram para o mesmo lado. Foi assim que consegui chegar onde cheguei, acho que fiz um percurso bonito… e espero que sirva de inspiração, também, para os mais novos.

Foi difícil aquele momento em que decidiu parar, colocou as sapatilhas de lado e não mais voltou a correr?
A maior dificuldade é quando assisto aos Campeonatos do Mundo, da Europa… em que a minha vontade é entrar para a televisão e estar lá a correr. Mas continuo a fazer o meu desporto. Não tanto como fazia, porque estou a dar prioridade à família. Gosto muito de acabar o trabalho – sou técnica na Câmara Municipal de Braga – e de estar em casa com a família. Mas estou sempre ligada, ao atletismo estou sempre ligada a notícias, provas, campeonatos. Estive um ano parada, fiz o meu luto por assim dizer, e sempre disse que quando fizesse um ano retomava os treinos e retomei. Mas agora não faço só corrida. Pedalo, nado, até já faço basquetebol e faço ginástica por causa da licenciatura. Tento olhar para trás sempre com um sorriso, porque conquistei coisas bonitas, às vezes também com um bocado revolta, porque quando estamos no auge vivemos rodeados de muitas pessoas e de repente… as pessoas que achámos que eram os nossos amigos, quando saímos, desaparece tudo.
Agora é uma das embaixadoras de Lagoa 2025. O que é que acha que estes campeonatos da Europa podem dar a Portugal?
Eu sinceramente gostava muito que Portugal voltasse aos grandes pódios, por equipa. E claro que tenho sempre aquela esperança de que a nível individual algum dos nossos atletas consiga chegar às medalhas. Falo particularmente a nível feminino onde a Mariana Machado ou a Laura Taborda estão em bom momento. Tenho esperança que a equipa faça uma coisa engraçada, como fizeram no último Campeonato da Europa em Portugal, que a Dulce Félix ainda estava na equipa e foram medalhadas. Claro que os campeonatos e os atletas estão cada vez mais competitivos. Não quer dizer que na minha altura não estivessem, mas eu acho que agora há mais aposta. Eu, por exemplo, quando fui campeã da Europa, fiz exatamente aquilo que a Mariana tem feito. Fui um mês para estágio, trabalhei, foquei-me para aquele momento e aquilo que eu acho é que também há muita união agora. Eu tive de ir para a altitude primeiro sozinha com o meu treinador e só depois o nosso grupo de treino conseguiu juntar-se a nós, o que ajudou bastante. Atualmente creio que já não é assim, há mais união. Hoje vai, por exemplo, o Samuel Barata para Font Romeu e de repente já está lá uma seita portuguesa, o que é espetacular. Há mais investimento, os portugueses investem mais, apostam mais e acho muito bem. Mas lá fora também, porque depois vê-se pelos resultados. Mas isto para dizer que tenho mesmo muita esperança de que Portugal faça algo de muito bom para nós, para a nossa nação e que que mostrem à Europa que os portugueses ainda estão aí para as medalhas.